Saúde
Beber todo dia não significa alcoolismo, mas não existe quantidade segura
Dependência alcoólica é marcada pela relação do usuário com a substância e pelos impactos da bebida no cotidiano
BATANEWS/FOLHA
Em 'Festim Diabólico,' um dos clássicos de Alfred Hitchcock, um drinque é o convite perfeito para que dois estudantes realizem, dentro da mente deles, o crime perfeito. O filme é pautado por bebidas alcoólicas, entre brandys, uísques e taças de champanhe.
O álcool é mostrado no cinema e na televisão em diferentes perspectivas. Às vezes mais mórbidas, como no caso de Hitchcock, ou como construção de glamour, como em 'Mad Men', com o protagonista Don Draper que fica constantemente com um copo de uísque em mãos.
Embora não exista um consenso sobre o impacto exato da mídia quando falamos de saúde, estereótipos prejudicam a compreensão real dos riscos do álcool. Representações extremas no audiovisual podem tanto alertar quanto afastar as pessoas da percepção de que também podem ter um problema, explica o psicólogo clínico João Vitor Borges, membro do Instituto Bem do Estar.
'O álcool é uma situação de alerta na sociedade há séculos. Não importa a relação subjetiva com o consumo, sempre é uma situação em que podem acontecer eventos inesperados, pois altera a percepção com muita intensidade até em pequenas quantidades', afirma.
Mas ainda que o álcool ocupe certo lugar de status no cinema ou na televisão, como afirma o médico Maurício de Souza Lima, o seu consumo está diferente, assim como sua dependência.
'Hoje em dia, sabemos que o transtorno por uso de álcool não se limita a quem consome bebidas diariamente. Muitas pessoas permanecem sóbrias durante a semana, mas abusam do álcool nos fins de semana, gerando consequências graves para si mesmas e para quem está ao seu redor', afirma o médico Uno Vulpo.
O transtorno por uso de álcool (DUA), segundo o DSM-5, quinta edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), é classificado de leve a grave, e não se limita mais à ideia de que só quem bebe diariamente tem problema, completa Vulpo, que usa as redes sociais para conscientizar sobre o consumo de substâncias.
Os critérios que defendem essa dependência incluem: beber mais do que o planejado, tentativas frustradas de parar, prejuízos pessoais, afetivos e financeiros, e continuar bebendo mesmo percebendo esses prejuízos. A abstinência pode gerar desde irritação e ansiedade até quadros graves de confusão, alucinações e convulsões em casos mais extremos, por deficiência de nutrientes.
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'Não existe dose segura de álcool diária. O alerta vem quando o consumo começa a causar disfunções psicológicas, cognitivas, familiares, financeiras ou no trabalho. O álcool deixa de ser algo eventual para virar uma necessidade', afirma o médico Uno, especialista em redução de danos no consumo de psicoativos, lícitos ou ilícitos.
O alcoolismo é reconhecido pela ciência como um transtorno mental e comportamental relacionado ao uso de substâncias, explica a presidente da Junta de Serviços Gerais dos Alcoólicos Anônimos (AA) Lívia Pires Guimarães.
Ela cita que o AA não faz diagnósticos, mas usa um método de 12 perguntas que ajuda a pessoa a refletir sobre sua relação com a bebida e identificar possíveis prejuízos na vida pessoal, profissional e social.
Como disse o médico, os prejuízos que o álcool causa na vida dos usuários é que indicam que o uso pode ter se transformado numa doença. 'Como parte do alcoolismo, muitas pessoas não conseguem perceber sozinhas os danos, o que torna a ajuda externa essencial.'
'O maior desafio de quem enfrenta problemas com álcool é justamente reconhecer isso e dar o primeiro passo para buscar ajuda. Esse começo é difícil porque, ao mesmo tempo em que a nossa sociedade incentiva o consumo de álcool, ela estigmatiza quem desenvolve problemas com a bebida. Isso cria um ambiente contraditório, em que pedir ajuda se torna ainda mais difícil', completa Guimarães.
O maior desafio de quem enfrenta problemas com álcool é justamente reconhecer isso e dar o primeiro passo para buscar ajuda. Esse começo é difícil porque, ao mesmo tempo em que a nossa sociedade incentiva o consumo de álcool, ela estigmatiza quem desenvolve problemas com a bebida. Isso cria um ambiente contraditório, em que pedir ajuda se torna ainda mais difícil
psicóloga e presidente da Junta de Serviços Gerais de Alcoólicos Anônimos do Brasil
O médico explica ainda que, ao perceber que alguém próximo está com problemas com álcool, o ideal é abordar a pessoa de forma acolhedora e reflexiva —nunca durante o uso ou com acusações diretas. É importante conversar em momentos de sobriedade, falando de si próprio ou fazendo perguntas abertas, sem impor julgamentos. Também ressalta que ninguém para de beber por imposição de outros, a decisão precisa partir da própria pessoa.
O médico Uno Vulpo diz que não existe um valor fixo ou universal para definir o conceito de beber socialmente. A medicina e a psiquiatria hoje consideram o impacto no resto do dia da pessoa como o principal critério: se a bebida altera seu funcionamento, seu humor, sua produtividade ou suas relações, já não é mais apenas social.
'Beber todos os dias, mesmo em pequenas quantidades, só seria social se não houvesse nenhum impacto no cotidiano, o que é raro e subjetivo. Além disso, há fatores genéticos, físicos e de hábitos de vida que interferem na tolerância ao álcool —pessoas que bebem menos frequentemente tendem a sentir os efeitos mais rápido.'
A romantização do álcool na mídia e a visão distorcida do alcoolismo atrapalham o reconhecimento precoce do problema. 'Somos posicionados a acreditar que a sociabilização em diversos contextos depende essencialmente de álcool', afirma o psicólogo João Vitor Borges.
Os especialistas citam que no Brasil a cultura associa bebida à socialização, e as propagandas reforçam esse consumo em nome do lucro, enquanto filmes e séries normalizam o hábito. Isso dificulta iniciativas de redução de danos e a conscientização sobre os riscos do consumo 'social' frequente.
Esse cenário 'dificulta um trabalho que considera a redução de danos, como são as práticas de saúde nas UBSs (Unidades Básicas de Saúde) e nos CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), ou um autorreconhecimento da população dos riscos do consumo sútil, mais frequente de bebidas alcoólicas', completa.
Série debate mudanças de comportamento em torno do consumo de bebidas