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Com 'vozes soletradas', autistas expõem ideias e quebram tabus
Em entrevista, americana autista conta como soletrar revolucionou sua vida
BATANEWS/FOLHA
O documentário 'Spellers' (algo como 'Pessoas que Soletram'), disponível na internet, mostra revoluções na vida de jovens adultos autistas americanos que não falavam e passam a comunicar pensamentos complexos apontando para letras em um papel —uma comunicação por soletração.
O filme mostra pais e mães incrédulos e emocionados vendo seus filhos, em silêncio durante toda a vida, expressarem emoções, opiniões e desejos bastante elaborados.
A americana Rachel Grace Falleur, 19, autista, estudante de neurociência na Universidade de Belmont, não está nesse filme, mas esteve no Rio de Janeiro e em Belém, em julho, para ensinar sobre como se comunicar soletrando palavras. Veio com a mãe, Angela Falleur, que é uma de suas parceiras de comunicação.
Nessa entrevista, feita por uma videochamada, Grace apontou as respostas numa grade com o alfabeto, que Angela segurava ao seu lado e falava alto as palavras à medida que iam sendo elaboradas —como feito no vídeo abaixo, gravado em um curso ministrado pelas Falleur na Link, em Belém.
Na conversa, Grace se contrapõe a crenças correntes sobre o autismo. Diz, por exemplo, que, ainda que não usasse a fala para se comunicar, compreendia tudo desde os 10 anos de idade e que não pensava por imagens.
Começar a se comunicar soletrando, em 2017, diz ela, 'foi como um renascimento'. 'Eu estava começando uma nova vida.'
Antes de você começar a se comunicar soletrando, você falava palavras, frases ou nada? Eu era capaz de falar, mas não quando demandada. Eu podia usar palavras de forma inconsistente.
A gente tem essa ideia, devido àquela cientista ou bióloga americana, muito famosa, esqueci o nome dela agora… que pessoas autistas geralmente pensam em imagens em vez de por palavras. Como foi para você? Dra. [Temple] Grandin é só uma num espectro. Eu nunca pensei em imagens.
Como você se sentia por não poder se comunicar? Era uma prisão. Era como um pássaro preso em uma gaiola.
Com que idade você se lembra de pensar isso? Veja, meu filho tem seis anos… você acha que numa idade assim você já se via como presa numa gaiola por não poder se comunicar? Sim. Eu podia ler aos 3 anos e eu queria me conectar com os outros.
Você se lembra das primeiras coisas que você disse usando a comunicação soletrada? Eu me lembro, eu disse para meus pais que minha escola era uma droga.
E como você se sentiu naquele momento ao perceber que finalmente podia comunicar seus pensamentos? Deve ter sido poderoso. Foi como um renascimento. Eu estava começando uma nova vida.
Há pré-requisitos para usar esse método? Uma criança pequena como meu filho poderia soletrar assim ou faltariam habilidades? Se você sabe o alfabeto, você pode aprender as habilidades motoras.
Você não precisaria aprender a escrever as palavras? Não, é só aprender como organizar seu corpo.
Qual a diferença entre soletrar e usar a CAA [Comunicação Aumentativa e Alternativa]? A CAA é montada por alguém sem a nossa participação. Soletrar é [usar] totalmente nossas próprias ideias e pensamentos.
O documentário aborda como muitas vezes falamos com autistas como se fossem crianças. Muitas e muitas vezes, já ouvi que, se uma pessoa fala frases de duas palavras, devemos falar com ela frases simples de três palavras. Isso faz sentido? A partir de que momento você já era capaz de compreender frases complexas? É sempre menos danoso para nós assumir que nós entendemos do que assumir que não entendemos. Eu entendia tudo aos 10 anos de idade.
E antes disso, você lembra o que entendia e não entendia? É difícil, porque ninguém falava comigo, só falava em volta de mim e eu não conseguia fazer perguntas.
Você gostaria de dizer algo além do que te perguntei? Estou muito impressionada porque parece que eu não preciso te convencer. E estou muito feliz em falar sobre isso.