Fichas criminais de agressores podem virar dado público para proteger mulheres em MS

Desconhecimento sobre uma possível ficha criminal de companheiro expõe mulheres a relacionamentos abusivos

BATANEWS/MIDIAMAX


Vanessa Ricarte foi morta aos 42 anos, após ter ido à Deam e pedir os antecedentes do feminicida. (Arquivo Pessoal)

“Ex-marido que tentou matar mulher a tiros tinha mais de 8 passagens por violência doméstica'; “Noivo que matou jornalista tinha 11 registros de violência doméstica e ex foi parar em hospital'; “Homem com várias passagens por agressão é preso após espancar a atual companheira em MS'.

Estas foram algumas das manchetes do Midiamax ao longo de 2025. Os títulos revelam a violência, mas também a recorrência no “modus operandi' de alguns agressores e feminicidas. Um passado que, em muitos casos, está escondido. 

O desconhecimento sobre uma possível ficha criminal de um companheiro expõe mulheres a relacionamentos abusivos. Na internet, alguns recomendam estratégias de segurança antes de sair com alguém, como procurar pelo portal JusBrasil.

Contudo, o Estado também pode subsidiar informações que ajudem as mulheres a se livrarem de agressores. Para isso, Mato Grosso do Sul pode aumentar o número de cadastros públicos com dados sobre condenados em crimes que envolvem crianças e mulheres (confira mais detalhes abaixo). 

A prática também é adotada em outros estados. No fim de junho, foi sancionada a lei em São Paulo que cria o Cadastro Estadual de Pessoas Condenadas por Crime de Estupro. 

No caso do estado vizinho, no cadastro, vão constar informações como dados pessoais, foto, características físicas, identificação datiloscópica e material genético (DNA) dos condenados. 

Feminicídios trazem debate

O Estado já conta com dois painéis disponíveis ao público que informam sobre pedófilos e condenados por racismo ou injúria. 

O tema voltou a ganhar notoriedade em fevereiro deste ano, após o assassinato da jornalista Vanessa Ricarte, aos 42 anos, a golpes de faca pelo ex-noivo Caio César Nascimento Pereira, de 35 anos. Ela foi esfaqueada três vezes na região do tórax e depois levada em estado gravíssimo à Santa Casa, onde veio a óbito. 

No dia do crime, o feminicida disfarçou calma e disse que aceitava o fim do relacionamento, mas o que veio a seguir foram facadas desferidas contra a jornalista. 

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O crime brutal e a repercussão nacional após a divulgação de áudios de Vanessa, em que ela narra o tratamento frio que recebeu na Deam (Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher), mobilizaram até o Governo Federal. Uma comitiva veio a Mato Grosso do Sul discutir políticas de proteção às mulheres vítimas de violência.

Agressores manipulam vítimas

O Executivo propôs algumas mudanças, entre elas, uma força-tarefa com 20 membros para desafogar 6 mil processos parados na Deam. No caso de Vanessa, ela procurou a delegacia duas vezes antes de ser brutalmente assassinada. 

Nos áudios enviados a uma amiga, a então servidora do MPT-MS (Ministério Público do Trabalho de Mato Grosso do Sul) conta que uma das delegadas teria se negado a comentar sobre o histórico de agressões de Caio Nascimento e falou que a vítima “já sabia, porque ele mesmo havia falado de agressões'.

E Caio Nascimento tem uma longa ficha criminal. Levantamento apontou que o feminicida tinha 11 registros de violência doméstica e que uma ex-companheira foi parar no hospital.

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Os boletins de ocorrência de violência doméstica começaram a ser registrados em 2020. Em um dos casos, uma ex-namorada foi parar na Santa Casa depois de ser agredida pelo músico. A ex-namorada agredida teve queimaduras no rosto e nos braços, do que parecia ser fricção no asfalto.

Além disso, problemas com drogas, álcool e violência foram alguns dos problemas narrados por familiares de Caio, que preferiram se afastar do músico depois de anos de sofrimento. Inclusive, apontaram um “modus operandi' do músico em procurar mulheres bem-sucedidas, mas emocionalmente fragilizadas após o fim de um relacionamento.

Uma outra ex-companheira de Caio registrou vários boletins de ocorrência contra ele. Um dos registros foi em 2024, após a separação do casal. Na delegacia, ela disse que conviveu maritalmente com Caio, por 1 ano, e que sofria violência psicológica. A mulher havia solicitado medidas protetivas contra o músico.

Cadastros

Há quatro projetos tramitando na Alems (Assembleia Legislativa de Mato Grosso do Sul) que podem criar novos cadastros públicos com informações de criminosos condenados. 

Dois deles tratam de assuntos parecidos e foram apresentados após o feminicídio de Vanessa Ricarte. O Projeto de Lei 83/2024, do deputado Pedro Pedrossian Neto (PSD), cria o Cadastro Estadual de Condenados por Crimes Praticados em Contexto de Violência Doméstica e Familiar.

O PL prevê que o cadastro seja público, mas restrito apenas a condenações com trânsito em julgado (ou seja, quando não cabe mais recurso) e sem identificação das vítimas, para preservar a integridade delas. Já as autoridades poderão ter acesso completo aos dados, com autorização da Sejusp (Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública).

“A ideia é fortalecer a proteção às mulheres e ampliar a transparência em casos de violência doméstica, respeitando os direitos das vítimas e o devido processo legal', aponta.

Já o Projeto de Lei 24/2025, apresentado pelo deputado estadual João Henrique Catan (PL), cria o Cadastro Estadual de Agressores de Violência Doméstica e Familiar. O parlamentar bolsonarista aponta que essa proposta já é implementada em outros estados visando à proteção às mulheres vítimas de violência doméstica. 

“Prevê a criação de um aplicativo com acesso a dados relevantes dos agressores, como nome, documentos, boletins de ocorrência, medidas protetivas, uso de tornozeleira eletrônica e decisões judiciais. Com isso, o Estado terá melhores condições de monitorar reincidências, prevenir novos crimes e salvar vidas', explicou.

O deputado estadual Pedro Kemp (PT) também apresentou PL no mesmo sentido. No caso do Projeto de Lei 26/2025, a proposta é a criação de um aplicativo que forneça dados sobre antecedentes criminais. A ideia é também fornecer informações sobre comportamentos abusivos — como perseguição, chantagem, manipulação e ciúmes excessivo — para que a mulher possa identificar e se afastar deste companheiro. 

“Com o intuito de colaborar com a estruturação das redes de apoio e simplificar o acesso aos históricos, será possível barrar a propagação deste ciclo de violência contra a mulher, uma epidemia em nosso país e em nosso Estado', afirmou o parlamentar na época. 

Crimes sexuais

O deputado Coronel David (PL) propôs o Projeto de Lei 305/2023, em que prevê a criação do Cadastro Estadual de Pessoas Condenadas por Crimes Sexuais. O parlamentar também é o autor da Lei Estadual 5.038/2017, que cria o Cadastro Estadual de Pedófilos. 

No caso dos condenados por crimes sexuais, a proposta é disponibilizar ao público dados como a identificação e fotos dos condenados. O texto ressalta que não poderá ser divulgada nenhuma informação que possa identificar as vítimas dos delitos. 

A proposta que tramita em Mato Grosso do Sul considera um rol maior de crimes do que a lei que foi sancionada em São Paulo. Portanto, isso significa que o público poderá ter acesso a informações sobre um assediador de um ônibus, assim como de um estuprador.

“Já foi conversado na Sejusp sobre isso, então já está tudo preparado para [que] quando o governador sancionar [a lei] a gente possa ter realmente esse cadastro para a utilização do público. O nosso cadastro é melhor que o de São Paulo, que trata apenas sobre os estupradores. O nosso, não. A gente fez de criminosos sexuais de todos os crimes sexuais previstos no Código Penal e em legislações correlatas também', explicou. 

Cuidados sobre fake news

A criação dos cadastros também leva a ponderamentos sobre a proteção de dados e os riscos de fake news. Em 2014, conforme registros policiais, Fabiane Maria de Jesus foi a primeira vítima a vir a óbito em decorrência de notícias falsas no Brasil. 

Uma fake news postada no Facebook, em maio daquele ano, viralizou e levou Fabiane Maria de Jesus a ser confundida com uma suposta sequestradora de crianças para rituais de magia negra.

Em 5 de maio, ela se dirigia à igreja, no Guarujá (SP), quando foi amarrada e agredida por uma multidão. Ela foi socorrida, mas morreu dois dias depois, deixando duas filhas menores de idade. 

A deputada estadual Gleice Jane (PT) reforça a importância desses mecanismos e pondera sobre a avaliação criteriosa das informações para a proteção das vítimas. 

“É fundamental que qualquer proposta nesse sentido venha acompanhada de salvaguardas institucionais que evitem o uso indevido das informações. No momento, não temos projeto tramitando de nossa autoria sobre novos cadastros públicos, mas estamos abertos ao diálogo com a sociedade civil, o Ministério Público, a Defensoria Pública e os movimentos de mulheres, para avaliar iniciativas que reforcem a proteção contra crimes como o feminicídio e a violência sexual, sempre com base na legalidade e na proteção à dignidade humana', avalia.