A doença da solidão: uma em cada seis pessoas no mundo vive dramaticamente só

Eles estão expostas a mais enfermidades e menos anos de vida pela frente. Eis o alerta da OMS

BATANEWS-VEJA


RISCO IDENTIFICADO - Drama juvenil: população de 13 a 19 anos é uma das mais impactadas pelo problema (moment/Getty Images)

Da Idade das Pedras à das máquinas inteligentes, a solidão é um sentimento que desafia continuamente o ser humano. Expressa em diferentes culturas e meios artísticos, está no centro da existência da ingênua Amélie Poulain, da rejeitada Macabéa de A Hora da Estrela, do náufrago Chuck Noland, vivido por Tom Hanks, e do bilionário Bruce Way­ne, que se transforma em Batman. A sensação de se sentir isolado, mesmo quando rodeado de pessoas, tornou-se, no entanto, um assunto de saúde pública. Como mostram pesquisas recentes, a solidão adoece  literalmente.

O alarme acaba de ser soado pela Comissão de Conexão Social da Organização Mundial da Saúde (OMS). Em relatório recém-publicado, a entidade revela que quase 20% da população global se considera solitária. Tamanho contingente está mais vulnerável a uma legião de perigos que vão de infarto e derrame a alcoolismo e ideação suicida. Por ano, são mais de 870 000 mortes ligadas ao problema no planeta. Um paradoxo para uma era em que a humanidade nunca esteve tão conectada — ao menos virtualmente.

O grupo da OMS se edificou há dois anos, período em que boa parte da sociedade já tinha retomado o contato físico antes restrito durante os tempos mais críticos da pandemia de covid-19. E chegou à conclusão de que, embora a nova crise não envolva vírus, ela também é epidêmica. O levantamento oferece um raio X de um contexto complexo, forjado por padrões culturais, pressões sociais e mudanças tecnológicas aceleradas. E, devido às suas repercussões no bem-estar físico e mental, tal cenário demanda ações imediatas, que vão muito além de iniciativas de foro individual.

“A desconexão é uma séria ameaça à saúde global, contribuindo para aumentar o risco de doenças e morte precoce, bem como os custos sociais e econômicos”, afirmou, no prefácio do documento, o diretor-geral da OMS Tedros Adhanom Ghebreyesus. “As rápidas transformações demográficas e tecnológicas estão reformulando a forma como vivemos, trabalhamos e nos relacionamos uns com os outros.”

Parece no mínimo contraditório que as pessoas se sintam mais sozinhas em meio às facilidades de conexão dos dias atuais. Afinal, todo mundo pode ser acessado com um clique praticamente em todos os horários. E a situação se torna ainda mais assombrosa quando se observa que os jovens de 13 a 19 anos são os mais impactados pelo isolamento, segundo o relatório. Uma das principais referências no Brasil no estudo do tema é o psiquiatra Thyago Antonelli-Salgado, pesquisador da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e membro da Global Initiative on Loneliness and Connection (GILC).

Segundo ele, há um conjunto de fatores que levam ao aumento da solidão no desenrolar do século XXI, desde a valorização de um estilo de vida mais independente e individualista até transformações nos hábitos familiares — cada vez menos pais e filhos assistem à TV juntos, por exemplo. Além da abdução pelo celular, outro fator por trás do fenômeno é o derretimento da empatia e da paciência que adubam qualquer relação. “Há uma grande oferta de contatos, mas as pessoas não toleram a frustração e o desconforto no relacionamento com os outros”, diz Antonelli-Salgado. Só que a interação olho no olho é tão fundamental quanto água e alimento. “As relações superficiais são como snacks: aplacam a vontade de se conectar, mas não preenchem nossa necessidade humana de seres sociais”, completa o psiquiatra.

Não é à toa que diferentes ramos da ciência estão se debruçando sobre as causas e efeitos da vida solitária. Nesse sentido, os especialistas fazem questão de distinguir solidão de isolamento social. Enquanto o primeiro conceito diz respeito a um estado subjetivo de desconexão até com pessoas próximas, o segundo está relacionado à falta de contato com outros indivíduos e pode ser até ser mensurado objetivamente. E nem toda ausência de companhia é nociva. Os experts valorizam a noção de solitude — momentos a sós para se autoconhecer. “É um estado que podemos escolher e que pode ser profundamente restaurador”, afirma o psiquiatra Brendan Kelly, professor do Trinity College Dublin, na Irlanda.

O problema é que uma multidão de gente não escolhe ficar sozinha. Acaba nessa situação por uma conjunção de fatores. E isso pode ser ainda mais dramático para os idosos — estima-se que, no Brasil, 28% do público com mais de 60 anos vive solitariamente. Um estudo da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, revela que pessoas mais velhas que se sentem sós correm um risco 40% maior de morrer em um período de quatro anos. Em um contexto de isolamento social, então, esse índice decola para impressionantes 75%. Sim, são consequências de curto e médio prazo.

Tal desfecho tem a ver com uma cascata de eventos psíquicos e fisiológicos. Por um lado, o estresse da solidão ativa a produção de substâncias que prejudicam o organismo. A OMS descreve esse processo como algo que se “infiltra sob a pele” e “se torna biologicamente enraizado”. A ponto de atrapalhar o fluxo nas artérias e no coração. “Esses eventos elevam a pressão arterial, aumentam a formação de coágulos e predispõem a arritmias”, diz o cardiologista Álvaro Avezum, coordenador do Centro Internacional de Pesquisa do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em São Paulo. E há o outro lado da história: quem vive sozinho se sente menos motivado a se cuidar. “Esse indivíduo tende a dormir menos, a fumar mais, a consumir álcool, a não se alimentar bem, não se exercitar, não aderir aos tratamentos”, elenca Avezum.

Por se tratar de uma questão de saúde pública, há um movimento crescente entre países como Japão, Alemanha e Austrália para desenvolver ações comunitárias a fim de frear a doença do isolamento. O Reino Unido chegou a estabelecer um “Ministério da Solidão”, focado em compreender as necessidades dessa população em sofrimento. Seu último relatório, de janeiro deste ano, aponta que a promoção da acessibilidade é crucial para reduzir as barreiras que isolam pessoas com deficiência física, por exemplo.

O combate a estigmas e preconceitos dirigidos a minorias é outra iniciativa frequentemente defendida. Entre as medidas prescritas pela OMS, estão a inclusão da interação social nos currículos escolares, o desenvolvimento de estruturas de integração intergeracional e até o apoio de companhias não humanas, como animais de estimação. Entre os idosos, inclusive “robôs sociais” podem fazer parte da solução. Ao contrário de outros tantos transtornos, a solidão não pode ser tratada com remédios. Ao menos a ciência já tem um diagnóstico claro e algumas orientações eficazes para dar aos pacientes.

Publicado em VEJA de 11 de julho de 2025, edição nº 2952