Saúde
Exame da retina pode detectar primeiros sinais da doença de Alzheimer
Redução da espessura das camadas da retina está associada à diminuição do volume do hipocampo
BATANEWS/VEJA
Ao longo da história da medicina, o diagnóstico de doenças sempre foi o impasse inicial, que, em cada época, se apresentou a seu modo. Nos primórdios, quando o conhecimento era escasso, interpretar sintomas dependia de observação e de boa dose de intuição. Com o tempo e a evolução da ciência, vieram instrumentos, exames e novas possibilidades de compreender as mensagens do corpo. Hoje, porém, há desafios mais complexos: a medicina, em muitos casos, precisa antever, predizer e agir antes mesmo que os sintomas tomem forma. É isso o que ocorre quando a tarefa do médico é prevenir ou deter o desenvolvimento de doenças cuja cura ainda não é conhecida, como as neurodegenerativas, que hoje, com o envelhecimento da população, representam um sério problema de saúde pública.
Atualmente, 55 milhões de pessoas em todo o mundo sofrem de algum tipo de demência; no Brasil, onde estão 2 milhões desses pacientes, surgem, a cada ano, 100 mil novos casos do seu tipo mais comum, a doença de Alzheimer. Recente pesquisa, consolidada no relatório “Economist Impact”, produzido pelo grupo britânico The Economist, revelou que o cenário é ainda mais preocupante: no Brasil, cerca de 80% dos casos de demência estão sem diagnóstico e, entre os 20% restantes, é raro o diagnóstico no tempo correto. Diante disso, um fator essencial é descobrir métodos mais rápidos e eficazes de detectar a doença, a fim de reduzir seu impacto não só para o paciente e seus familiares como para o sistema de saúde.
Ao lado da descoberta de biomarcadores no sangue, que podem acelerar o diagnóstico da enfermidade e torná-lo mais acessível, um campo inovador começa a se consolidar: o uso da retina como marcador precoce da doença de Alzheimer, com o apoio da tomografia de coerência óptica (OCT), da retinografia e da inteligência artificial.
Pesquisadores descobriram que a retina, tecnicamente parte do sistema nervoso central, pode manifestar alterações neurodegenerativas antes mesmo que o paciente apresente queixa de déficit cognitivo. A diminuição da espessura da camada de fibras nervosas ou das células ganglionares já foi associada, em diversos estudos, a estágios iniciais do Alzheimer. Imagens obtidas por OCT e retinografias de fundo de olho trazem, com precisão micrométrica, dados objetivos que não sabíamos interpretar — até a chegada da inteligência artificial.
Sistemas baseados em redes neurais convolucionais (“convolutional neural networks” ou CNNs), treinados com milhares de imagens, já são capazes de identificar padrões sutis que correlacionam essas alterações retinianas com o risco de futuro desenvolvimento de Alzheimer. Estima-se, com base em alguns estudos, que esses modelos tenham alcançado mais de 85% de acurácia diagnóstica, um número muito expressivo. Considerando que o exame, além de rápido e pouco dispendioso, não é invasivo, a descoberta é especialmente promissora, pois permite seu uso em larga escala.
Com esses exames, abre-se espaço para um modelo de cuidado preventivo, em que se torna possível fazer o diagnóstico precoce e antecipar as necessárias intervenções — medicamentosas, cognitivas e familiares — para um momento em que ainda há mais margem de proteção do cérebro, reduzindo também o impacto que a doença causa entre as pessoas próximas.
Graças à inteligência artificial, hoje podemos integrar conhecimentos altamente especializados, que são fruto dos avanços segmentados de diferentes áreas da medicina. Com o cruzamento de gigantesca quantidade de dados, os sistemas, embora não possam substituir o médico na sua relação com paciente, certamente vão ampliar sua capacidade de ver mais longe.
Não podemos ignorar, é claro, que há desafios reais a enfrentar nessa seara. Os modelos de inteligência artificial ainda precisam ser validados em diferentes populações, padronizados entre equipamentos e acompanhados de diretrizes éticas transparentes. A direção, porém, é inequívoca: a retina pode ser uma das chaves do diagnóstico preditivo de doenças neurodegenerativas.
Como oftalmologista e como médico comprometido com a inovação, vejo nessa fronteira uma das mais fascinantes oportunidades da medicina contemporânea. Ver melhor não é apenas enxergar com mais nitidez — é compreender o que está por trás do visível. E talvez seja na delicada arquitetura da retina que comecemos a antecipar a perda da memória e a preservar aquilo que, uma vez perdido, nenhum tratamento consegue devolver por completo.