Saúde
Estudo revela a mistura de hábitos que pode ‘rejuvenescer’ o cérebro em até 2 anos
Pesquisa americana sobre estilo de vida reforça resultados do estudo considerado 'divisor de águas' na prevenção do declínio cognitivo e do Alzheimer
BATANEWS/FOLHA
Os avanços da medicina nos ajudaram a viver mais. Isso é fato. Mas, com mais tempo de vida, o outro lado da moeda também entra em cena: como garantir que o nosso cérebro acompanhe esse ritmo? Cada vez mais, essa preocupação ganha espaço no universo da pesquisa. E uma das respostas mais promissoras para a proteção contra demências pode estar não apenas em pílulas ou procedimentos de ponta, mas nas escolhas do dia a dia, principalmente quando elas caminham juntas, de forma coordenada.
É isso que sugere pesquisa americana divulgada nesta segunda-feira, 29, na revista JAMA – uma das mais respeitadas no meio científico – e apresentada na conferência internacional de Alzheimer, em Toronto. Batizado de US POINTER, o estudo acompanhou, por dois anos, mais de dois mil adultos entre 60 e 79 anos. Todos tinham risco aumentado de desenvolver problemas cognitivos, mas não apresentavam quaisquer sinais de demência. A proposta foi investigar se mudanças no estilo de vida poderiam preservar, ou até melhorar, a saúde cerebral durante o envelhecimento, especialmente nesse grupo, de maior risco.
Na prática, esse novo trabalho dá continuidade ao que começou lá atrás, em 2015, com o estudo FINGER, conduzido na Finlândia e publicado na revista The Lancet. Na época, a pesquisa – liderada pela geriatra Miia Kivipelto – foi o primeiro ensaio clínico randomizado (o tipo mais confiável para testar intervenções em saúde) a mostrar que uma combinação de alimentação equilibrada, atividade física, controle de fatores de risco como pressão alta e estímulo cognitivo podia ajudar a desacelerar o declínio mental em pessoas mais velhas.
“O que estamos vendo agora é uma confirmação — e uma confirmação de grande valor, porque reforça os achados de um estudo que, à época, foi considerado um divisor de águas”, comenta a geriatra Claudia Suemoto, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).
Do intensivo ao autoguiado
Os participantes foram divididos em dois grupos. Todos tinham pelo menos quatro fatores de risco para demência, como sedentarismo, alimentação inadequada, hipertensão, diabetes, colesterol alto e histórico familiar.
De um lado, os participantes receberam uma intervenção estruturada e intensiva, com 38 encontros presenciais, exercícios físicos supervisionados (aeróbicos, de resistência e de alongamento), orientação alimentar baseada na ‘Dieta MIND‘ (que prioriza folhas verdes, grãos integrais, azeite e frutas como o mirtilo) e atividades cognitivas regulares. Do outro, os voluntários seguiram um modelo mais “leve”, autoguiado, com seis encontros, materiais educativos e suporte remoto, mas com os mesmos princípios.
Ambos os grupos passaram por testes padronizados que avaliaram três domínios principais da cognição: memória episódica (a capacidade de lembrar de eventos do dia a dia, como onde guardou as chaves), função executiva (habilidades como planejamento, organização e tomada de decisão) e velocidade de processamento (a rapidez com que o cérebro entende e reage a informações). Para exemplificar: um dos testes aplicados foi o DSST, conhecido como ‘substituição de símbolos’, no qual o participante precisa preencher rapidamente os símbolos corretos com base em uma tabela de referência.
Quais foram os resultados?
Curiosamente, os dois grupos melhoraram com o tempo. No grupo que teve uma intervenção mais estruturada, a média de pontos nos testes subiu 0,243 por ano. Já o grupo que fez o programa sozinho melhorou, em média, 0,213 ponto por ano. Durante a conferência em Toronto, nesta segunda-feira à tarde, os autores mostraram um cálculo que ajuda a entender melhor essa diferença: o desempenho do grupo estruturado foi parecido com o de pessoas 1 a 2 anos mais jovens, se comparado ao grupo autoguiado. Resumindo: embora essa diferença de 0,029 pareça pequena, na prática, ela faz diferença.
Ainda assim, o fato da intervenção autoguiada, menos intensiva e com menor custo, também ter rendido benefícios cognitivos, não deixa de ser interessante. “Mais do que a diferença, o achado mais marcante talvez seja a semelhança dos benefícios cognitivos entre os dois grupos”, observou o neurologista Jonathan Schott, da University College London, em editorial no JAMA. Vale destacar que o grupo autoguiado teve 89% de adesão, o que reforça a importância do engajamento para que os resultados apareçam.
Boa parte da melhora foi observada nas chamadas funções executivas. A evolução seguiu um padrão: uma melhora inicial, seguida por uma fase de estabilidade e, depois, nova melhora no segundo ano, o que sugere um efeito cumulativo com o tempo. “A cognição tem várias facetas, que a gente chama de domínios”, explica Suemoto. “Todo mundo associa demência à perda de memória, mas também há impacto na atenção, na velocidade de processamento e, principalmente, na função executiva.”
Esse ponto é importante porque alterações nas funções executivas costumam ser um dos primeiros sinais da demência de origem vascular (aquela causada por danos nos vasos e fluxo sanguíneo do cérebro). Para Suemoto, a hipótese que o estudo levanta é de um possível impacto na redução ou desaceleração das lesões cerebrais. No entanto, ela ressalta que o estudo ainda não fez esse tipo de análise direta, algo que os próprios autores reconhecem como uma limitação.
Um modelo replicável
Desde que o estudo pioneiro FINGER foi lançado, ele passou a servir de modelo para versões semelhantes em vários cantos do mundo. Isso significa que essa história não para nos Estados Unidos e na Finlândia. Iniciativas inspiradas no mesmo formato estão em andamento na América Central e do Sul, Canadá, Índia, Japão, Coreia do Sul e Malásia. No Brasil, inclusive, as coisas também já estão em movimento: o projeto está sendo coordenado na USP e a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). A expectativa é que os resultados sejam apresentados em 2026.
A ideia geral é a mesma em todos os lugares: combinar alimentação equilibrada, atividade física e estímulo cognitivo. Mas cada país faz adaptações para a sua realidade. “A dieta mediterrânea é considerada protetora para o cérebro, mas não adianta recomendar salmão e castanhas onde esses alimentos são caros ou não fazem parte da cultura local”, destaca Suemoto. “O mesmo vale para os exercícios e os testes cognitivos: tudo tem que fazer sentido para as pessoas que participam.”
Por aqui, o estudo tem suas particularidades. Os participantes, em geral, têm menor escolaridade e, por isso, os testes cognitivos foram ajustados. A alimentação e os exercícios também foram adaptados ao contexto. “Tem lugar que faz as atividades em academias, outros em igrejas ou ao ar livre, só com o peso do corpo”, compartilha a especialista.
Sem mágica, com resultado
É fato que os estudos não apresentam uma fórmula mágica contra a demência – e talvez essa seja justamente a boa notícia. A intenção é mostrar que, com intervenções simples, acessíveis e adaptadas à realidade das pessoas, é possível proteger a saúde do cérebro ao longo da vida. Nada de promessas mirabolantes: o segredo parece estar na coordenação de atitudes cotidianas: comer melhor, se movimentar mais, manter a mente ativa, controlar os fatores de risco.
Os autores também destacam o potencial dessas intervenções para políticas públicas. O grupo autoguiado, por exemplo, teve ganhos relevantes com menor custo e carga para os participantes, o que pode ser interessante para estratégias populacionais. Ainda assim, os dados mostram que, quando essas mesmas ações são feitas com acompanhamento intensivo, metas claras e apoio contínuo, os resultados tendem a ser ainda melhores.
“O fato de conseguirmos melhorar a cognição com menos recursos e menos exigência para os participantes é algo muito relevante. Isso destaca que, embora nem todos tenham o mesmo acesso ou capacidade de aderir a intervenções comportamentais mais intensivas, mesmo mudanças modestas podem proteger o cérebro ”, disse Laura D. Baker, professora de gerontologia e geriatria na Faculdade de Medicina da Universidade Wake Forest e pesquisadora principal do estudo US POINTER, em entrevista ao periódico da Universidade da Califórnia.