Cotidiano
Liberdade patrimonial: como a mudança de regras do STF impacta casamentos após os 70?
Em MS, 52 uniões, envolvendo pessoas acima de 70 anos, optaram por regimes diferentes da separação obrigatória de bens
BATANEWS/REDAçãO
Uma importante decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) está mudando como idosos de Mato Grosso do Sul encaram o amor e o patrimônio na terceira idade. Ao garantir que pessoas com mais de 70 anos possam escolher livremente o regime de bens ao se casar ou constituir união estável, o STF derrubou uma regra do Código Civil que impunha a separação total de bens.
Contudo, a mudança é vista com bons olhos por especialistas, que avaliam que a medida reforça o direito de escolha e abre caminho para novos arranjos familiares e patrimoniais no Estado.
Desde 1º de fevereiro de 2024, o STF passou a permitir que casais com mais de 70 anos escolhessem livremente o regime de bens ao se casar, desde que a vontade seja expressa em escritura pública. A mudança afasta a obrigatoriedade da separação total de bens e pode ser formalizada em qualquer um dos 119 Cartórios de Notas de Mato Grosso do Sul.
De acordo com um levantamento do CBN/MS (Colégio Notarial do Brasil, Seção Mato Grosso do Sul), no último ano foram registrados 237 casamentos no Estado com ao menos um dos cônjuges acima dos 70 anos. Em 52 desses casos, os casais optaram por regimes diferentes da separação obrigatória, como comunhão parcial, comunhão universal ou participação final nos aquestos. Já em 185 uniões, manteve-se o regime da separação de bens, que até então era obrigatório para essa faixa etária no Brasil.
A decisão do STF representa uma mudança histórica no Direito brasileiro. A obrigatoriedade da separação de bens por critério etário existe desde o Código Civil de 1916, que determinava o regime compulsório para homens acima de 60 anos e mulheres acima de 50. O Código de 2002 unificou essa idade em 60 anos para ambos os sexos, e só em 2010, com a Lei 12.344, esse limite foi elevado para 70 anos. A nova regra rompe com esse modelo, garantindo liberdade de escolha para casais nessa faixa etária.
Como funciona a decisão, na prática?
A advogada Lauane Braz Andrekowisk Volpe Camargo, presidente da Comissão de Direito de Família da OAB/MS (Ordem dos Advogados de Mato Grosso do Sul), explica que a separação obrigatória de bens continua sendo o regime padrão para quem tem mais de 70 anos. No entanto, com a decisão do STF passa a ser possível fazer um pacto para escolher outro regime, como o da comunhão parcial, por exemplo. Isso tem impacto diretamente em casos de divórcio e também em heranças.
Lauane explica que a decisão pode incentivar mais casais a fazerem testamentos e pactos antenupciais. Isso porque, com a mudança, pessoas com mais de 70 anos agora podem escolher o regime de bens que desejarem ao se casar ou iniciar uma união estável, algo que antes era proibido.
Se o casal não fizer o pacto, o cônjuge sobrevivente continua sem direito à herança caso o parceiro falecido tenha filhos. Mas, se optarem por um regime diferente e fizerem o pacto, esse cônjuge poderá, sim, ter direito à herança. O problema é que muitos brasileiros ainda evitam fazer pactos por questões financeiras ou falta de informação.
Para a advogada, a mudança representa um aumento na necessidade de realização de bons planejamentos familiares, para que a partilha dos bens não fique refém das decisões judiciais, que mudam a todo tempo.
“Pelo pacto nupcial, as regras de partilha para os casos de divórcio podem ser definidas previamente e as regras sobre herança podem ser definidas por meio de testamento. Estes dois instrumentos, se bem feitos, com o auxílio de advogados especializados, evitam processos longos e caros no judiciário', completa Lauane.
Credito. Midiamax
Decisão pode impactar filhos e herdeiros?
Conforme análise da advogada, as novas possibilidades de acordos matrimoniais para casamentos entre pessoas com mais de 70 anos têm gerado certa preocupação entre filhos e herdeiros. Isso porque, se o casal optar por um regime como a separação convencional ou a comunhão parcial de bens, o cônjuge sobrevivente pode ter direito a uma parte da herança, o que antes não acontecia obrigatoriamente.
No entanto, Lauane esclarece que se a pessoa com mais de 70 anos se casar sem fazer o pacto, nada muda: o cônjuge sobrevivente não terá direito à meação nem à herança, caso existam descendentes.
A advogada ressalta também que essa decisão não interfere nos casos de testamento. A divisão de bens em vida, por meio do pacto nupcial, trata somente de questões patrimoniais do casal durante o casamento. Já a herança só pode ser definida por testamento, algo que já era permitido antes da decisão. “Em outras palavras, a pessoa que se casa com mais de 70 anos pode fazer um testamento para beneficiar seu cônjuge. Isso sempre foi possível, nada mudou'.
Flexibilização incentivou procura por testamentos
Desde a flexibilização nos pactos nupciais para pessoas que se casam já idosas, a advogada afirma que recebeu pedidos de clientes para realizar o testamento, como meio de proteger os seus descendentes.
Lauane avalia que a nova liberdade preocupa, principalmente, porque a pessoa já construiu seu patrimônio e tem menos tempo para corrigir possíveis erros na escolha do regime de bens, nessa fase da vida. A advogada argumenta que, mesmo sendo lúcido e capaz, ao optar por dividir seus bens com um novo cônjuge, o idoso pode acabar enfrentando situações delicadas.
Por outro lado, a decisão do STF mantém a separação obrigatória como regra nos casos em que não houver pacto, o que ainda protege a maioria das pessoas, já que muitos casais evitam fazer um pacto antenupcial por falta de informação ou recursos.
Decisão reforça direitos e autonomia de idosos
Para o presidente do CNB/MS (Colégio Notarial do Brasil, Seção Mato Grosso do Sul), Elder Dutra, a decisão do STF foi um avanço importante para a população idosa, principalmente, considerando o aumento da expectativa de vida e a formação de novas famílias, muitas vezes, após divórcios.
“É fundamental dar mais autonomia para as pessoas poderem decidir acerca do regime de bens. Então [a decisão do STF] vem em uma boa hora, por permitir esse exercício de liberdade e autonomia pelas pessoas que se pretendem casar, ainda que maiores de 70 anos', afirma.
Na avaliação de Elder, dar aos idosos a liberdade de escolher o regime de bens, em vez de impor a separação obrigatória, é uma forma de respeitar sua autonomia e evitar uma interferência exagerada do Estado, como se todos fossem automaticamente vulneráveis.
Ele destaca que cada caso poderá ser avaliado individualmente, e essa mudança deve estimular mais idosos a oficializar seus relacionamentos. O especialista reforça que isso garante mais liberdade para cada casal organizar seu patrimônio de acordo com sua realidade e seus objetivos, sem uma imposição legal.
“Eu vejo essa mudança muito positiva, por reforçar essa importância do direito de escolha e de um planejamento patrimonial, também, para as pessoas em todas as fases da sua vida', finaliza.
Como solicitar um pacto antenupcial?
O Pacto Antenupcial é um contrato celebrado pelos noivos para estabelecer o regime de bens e as relações patrimoniais que serão aplicáveis ao casamento ou à união estável. Ele é necessário quando as partes querem optar por um regime de bens diferente do regime legal: a comunhão parcial de bens.
O pacto deve ser feito por escritura pública de forma física em Cartório de Notas ou pela plataforma e-Notariado. Antes do casamento ou da união estável, as partes devem comparecer ao Cartório de Notas com os documentos pessoais (RG e CPF originais).
Posteriormente, o documento deve ser levado ao cartório de Registro Civil onde será realizado o casamento. Após a celebração da cerimônia, o casal deve encaminhar o pacto ao Cartório de Registro de Imóveis do primeiro domicílio do casal, para produzir efeitos perante terceiros e averbar na matrícula dos bens imóveis do casal.
O regime de bens começa a vigorar a partir da data do casamento e somente poderá ser alterado mediante autorização judicial.
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