Traumas, abusos e preconceitos: pivô revela superação para voltar ao basquete após uma década

Aline, atualmente no Campinas, abre o jogo sobre o que passou dentro e também fora das quadras: "Sofri abusos que não condizem com o que desejo para a minha vida"

BATANEWS/GE


Parecia só mais uma quarta-feira de LBF (Liga de Basquete Feminino) quando o Campinas entrou em quadra para enfrentar o Sodiê Mesquita, pela quarta rodada da primeira fase. O duelo, equilibrado do início ao fim, não foi especial apenas pela definição nos últimos instantes. O relógio estava prestes a estourar quando a bola chegou na pivô Aline.

Ela já estava com 12 pontos na partida e tinha 23 segundos para virar o placar. Mas o que é menos da metade de um minuto para quem esperou mais de uma década por isso? Decidida, entrou no garrafão e, de bandeja, garantiu, por apenas um ponto de diferença, a primeira vitória da equipe na competição: 68 a 67.

O resultado representou mais que os pontos na classificação. Foi como se aquela cesta coroasse o retorno às quadras depois de tanta resiliência, palavra tatuada na pela de Aline não por acaso. A jogadora de 33 anos abriu o coração ao ge sobre dramas, lutas, inseguranças e a alegria de voltar ao fazer o que ama após mais de uma década.

- Cheguei a passar mal durante a partida, fui ao vestiário vomitar. Lá estava muito quente, estava com a vista preta. Voltei faltando pouco tempo, e consegui ajudar a equipe com os pontos. Quando acabou, olhei para a Babi e comecei a chorar, pois valeu tudo a pena, toda essa superação.

Aline superou muito mais que um mal-estar para estar ali naquele momento. Entre idas e vindas, foram quase 13 anos ao todo de afastamento do basquete. Durante esse período, Aline lidou com "portas fechadas", traumas pessoais e problemas com o peso para conseguir voltar ao esporte.

- Hoje, a superação atingiu um nível muito alto na minha vida. Não foi só a coragem, superei questão de peso, estava gorda, cheguei a pesar mais de 130 kg. Ninguém queria contratar uma atleta acima do peso pelo risco de lesão e ter que arcar com isso. Tive muitas portas fechadas. Eu sabia que poderia evoluir com apoio e recebi isso aqui em Campinas. No fim, a superação vem de dentro, e eu quero chegar cada vez mais longe.

O afastamento

Em meados do fim de 2011, após passar por um período na seleção brasileira de base, Aline enfrentou os primeiros problemas físicos, tendo que ficar afastada por cerca de três meses após lesão no joelho, sofrendo com tendinite, bursite e acúmulo de líquido. Por causa dos custos do tratamento, voltou para casa e deixou o clube que estava.

- Foi quando tive o gatilho de não voltar. Na época não via mais sentido continuar, sabendo que eu tinha feito um baita campeonato no começo do ano. Foram momentos de escolhas, mas não digo que são escolhas erradas. A gente sabe as escolhas que a gente faz.

- Em 2012 eu já não jogava por nenhum time, já não tinha mais contato com o basquete. Fiquei três anos e meia parada.

A busca por motivação após "relacionamento abusivo"

No período de afastamento, Aline passou por problemas pessoais. Um deles envolveu um relacionamento que adiou seu retorno às quadras. Após o término, buscou um novo clube, mas esbarrou na falta de oportunidade.

- Como foram três anos e meio longe do basquete, eu tinha perdido o contato de muita gente. Recebi muitas portas na cara, muitas falas que me machucaram. Uma delas eu nunca esqueci, quando me disseram que o basquete feminino nem estava em alta, nem era tudo isso, que não valeria a pena voltar. Foi nessa fala que peguei a motivação para voltar.

Após algumas tentativas, Aline conseguiu um teste no time de Santos a partir de um contato da amiga Fabiana Oliveira (Fabão). Longe de estar 100% condicionada e jogando com um corte no supercílios, a pivô conseguiu entrar na equipe e jogar os campeonatos regionais.

Na virada de 2015 para 2016, durante o período de férias em Campinas, Aline recebeu a notícia de sua primeira gravidez, mas sofreu um aborto espontâneo. Mesmo com alerta da médica sobre problemas de cavidade uterina, dificultando uma gestação segura, engravidou novamente.

- Só fui descobrir depois que entrei em contato com um amigo meu de Portugal falando que eu queria voltar a jogar. Estava dando tudo certo, ele tinha conseguido um time para mim, não era uma equipe de muita qualidade, mas eu iria voltar. Por desencargo, eu fui fazer um teste, e descobri que estava grávida novamente.

- Fiquei grávida da minha filha, e como já havia tido uma perda, tive que fazer um tratamento com remédio, para não passa por aquela situação novamente, após nem ter tido um período de luto pela perda da primeira filha por conta de machismo.

Com acompanhamento médico, Aline passou por uma gestação saudável e realizou o sonho de ser mãe com a chegada de April. Porém, após cinco meses, o retorno ao basquete precisou ser adiado outra vez por causa de uma nova gravidez - que também acabou sendo interrompida.

- Tomei o remédio por três meses e após muita luta ela nasceu, saudável, linda. Após 5 meses, descobri que estava grávida novamente de 12 semanas. A médica ficava se perguntando como isso e ficamos em uma situação delicada, de não querer expor a situação, sempre acuadas com isso. Sofri muito no meu relacionamento, abusos que não condizem com o que desejo para a minha vida, sofri muito mesmo. Quando decidi sair do relacionamento, foi mais difícil ainda, pois já tinha uma criança .

Do limite à superação: a última chance no México

Após passar um período jogando pelo Campinas Masters, ainda sem muito destaque e sofrendo com a balança, Aline embarcou para sua última chance de retomada na carreira.

- O ano da virada foi 2023. Fui convidada a jogar pelas meninas do São Paulo, joguei e fiz um bom campeonato, mesmo pesando 130 kg. Ninguém acreditou no meu desempenho, me chamaram de gorda e disseram que não conseguiria. Fui lá e mostrei o contrário.

- Depois de um bom campeonato, recebi muitos contatos interessados no meu basquete, inclusive da seleção do Máster, que seria no México, mas minhas condições eram difíceis, pois trabalhava para alimentar minha filha, morava de aluguel. Eles compraram minha causa e me preparei, perdi cerca de 10 kg, e fui para o México como a última chance, pois se não conseguisse nada ali, nenhum clube, iria desistir para sempre do basquete.

Após retornar do México com um bom desempenho, Aline foi convidada pelo Ourinhos para jogar a Copa São Paulo e ajudou seu time a chegar em 3º lugar no torneio. Em julho de 2023, em novo período de férias, começou a flertar para retornar ao Campinas.

- Fui para Campinas, minha filha estava de férias e fiquei duas semanas parada. Quando estava perto para acabar as férias, eu mandei mensagem para Karla pedindo um lugar para dar continuidade na minha preparação física. Não estava pedindo para ninguém me contratar, porque se não desse certo, iria desistir. Eu tinha mais três semanas, pois minha filha estava no fim das férias e iria fazer uma cirurgia de hérnia umbilical.

Aline recebeu o telefonema de Karla, presidente do Campinas, oferecendo apoio e a estrutura do clube para aprimorar o condicionamento físico. Desde agosto de 2024, ela defende o Campinas e se tornou peça importante na equipe que disputa a LBF.

- A Karla sentou comigo, explicou sobre os cuidados para eu não me machucar, pois seria minha responsabilidade. Aí tudo aconteceu, tive a oportunidade de conhecer a Renata Martins, preparadora física do Campinas, que me ajudou muito, tem todo o crédito, perdi 24 kg. Foi um trabalho muito árduo, eu não via o descanso, queria buscar mais para ter um ótimo resultado. Comecei a ter oportunidade de treinar mais e hoje eu estou aí, correndo com o time.

Com sete vitórias em 14 jogos, o Campinas aparece na sexta colocação da LBF. Tem 21 pontos e vai em busca da reabilitação nesta quarta-feira, quando faz duelo direto dentro do G-8 contra o Cerrado Basquete, às 19h30, fora de casa - o time do Distrito Federal é o oitavo, com 20 pontos. Os oito melhores avançam aos playoffs.

* Colaborou Gustavo Seneme, estagiário, sob a supervisão de Heitor Esmeriz