Viva a “Constituição da Mandioca” – 25 de março de 1824

PROFESSOR DOUTOR EDUARDO MARTINS, DOCENTE ADJUNTO 4, UFMS, CAMPUS DE NOVA ANDRADINA, CURSO DE HISTóRIA.


Foto: Divulgação

Há exatos 201 anos o imperador, isso mesmo, não era rei, dom Pedro I, outorgava aquela que seria a primeira Constituição brasileira, a Carta Magna, ou numa bela metáfora, o registro de nascimento do Brazil (com “z”). Nascia ali, no Rio de Janeiro, um país independente politicamente de Portugal, onde foi colonizado durante 322 anos. Por que grifei a palavra outorgada? Para deixar claro e evidente que a primeira Constituição, foi um ato arbitrário, uma atitude despótica de um homem europeu, colonialista, de mentalidade burguesa, que impôs “sua” vontade de “nação” ao país. Atitude essa que deita raiz desde o ano que havia se passado, 1823, em que ele fechou o parlamento, num arroubo imperialista e de afronta ao Poder Legislativo, democraticamente eleito pelo “povo”, e constituído em Assembleia Constituinte.

Com sua guarda armada invadindo a Casa do Povo, prendendo e até exilando alguns deputados, portanto, aquela Assembleia teria vida efêmera de curtinhos 6 meses, aberta no mês de maio, dia 3, e fechada no 12 de novembro, no famigerado evento marcado pelo historiografia como “noite da agonia”.

Sob o pretexto de que a Assembleia Constituinte, dos deputados, estaria fazendo uma Constituição por demais liberal, dom Pedro I, deu o golpe naquele Congresso e pegou o projeto que estava pronto, chamado pitoresca e jocosamente de “Constituição da mandioca”, porque exigia que o eleitor tivesse renda de 150 alqueires de mandioca, evidentemente excluindo a esmagadora maioria da população de pobre, negros libertos, indígenas; além naturalmente, de acordo com o projeto de Constituição excluía as mulheres, “índios bravos”, e escravizados de serem eleitores.

Assim, dom Pedro I entrou para a história, para além daquele grito, que não houve, (7 de setembro), por ser o “autor” da primeira Constituição brasileira, por ele imposta.

O que temos para celebrar do “Registro de Nascimento”, enquanto, país independente? Tenho dois vieses de interpretação: O primeiro, nada. Explico o porquê. A Constituição excluiu a maioria da população do projeto de país, não aboliu o tráfico atlântico africano, não aboliu a escravidão, não fez a reforma agrária, não criou um sistema público de educação, não inseriu os povos indígenas como cidadãos, não inseriu as pessoas negras libertas no projeto de país. Assim, o que temos de negativo foi que, embora liberto, o país, tivesse condições para construir um Estado-nação soberano, que desse dignidade e cidadania a todos e a todas não foi capaz de romper com a mentalidade colonialista europeia, dando continuidade num certo projeto elitista neocolonialista. Agora as camadas populares, seriam exploradas pelas elites, pela burguesia capitalista “brasileira”. Desta feita, a leitura do processo de independência e da primeira Constituição do país é pessimista.

O segundo viés interpretativo, tem um caráter mais otimista, por assim dizer, a Constituição outorgada, oriunda do projeto da “Constituição da Mandioca”, retira a renda em alqueires de mandioca como requisito para ser eleitor. Assim, um número muito maior de eleitores pode conquistar seu direito político à cidadania brasileira, concedido a todos os nascidos no Brazil, antes reservado apenas aos ricos.

A renda mínima, exigida agora, era não mais em alqueires de mandioca, o que dava o direito político apenas às velhas aristocracias rurais, mas a Constituição outorgada, de 25 de março de 1824, alterou o modelo de direitos políticos, ampliando-o, uma vez que a exigência para ser eleitor caiu para 100$000 (cem réis); aos leitores 200$000 (duzentos réis), deputados 400$000 (quatrocentos réis) e senadores 800$000 (oitocentos réis), uma pequena bagatela para época, o que ampliou consideravelmente o número de pessoas votantes, tornando a participação na cidadania mais efetiva ou mais plausível.

No seu artigo 6º, estabeleceu a separação dos quatro poderes, isso mesmo, dom Pedro I, criou um Poder apenas para uso e abuso dele; o Moderador, além do Judiciário, Legislativo e Executivo, ampliando a noção de direitos civis e sociais e se alinhando às democracias estadunidense e europeias. Evidentemente, sob os auspícios do modelo colonialista burguês, de matiz iluminista, portanto excludente das pessoas colonizadas.

Para além de julgamentos históricos, maniqueísmos, e principalmente anacronismos, cumpre a nós olharmos para o passado, aquele ano de 1824 e ver a crise em que ele estava submetido, ao mesmo tempo, em que criava uma “nação” independente, poderes de Estado, noções de cidadania, direitos civis e sociais, tinha o passado fantasmagórico assombrando, longos 322 anos de antigo regime, de monarquia, às vezes, absolutista.

Era época de adequação dos direitos, neste caso a Constituição de 1824, abre uma fenda temporal, para uma nova temporalidade futurista em que só as lutas contínuas e incessantes daqueles e daquelas que ficaram, momentaneamente, de fora do projeto de nação, pudessem tencionar a mola da cidadania, forçando-a para o seu lado, contra as elites, contra a burguesia colonialista brasileira, que teimava em impor uma medida de força esticando essa mola para o lado da exploração e opressão. A cidadania considerada uma mola, então, precisa ser exercida; força, resistência e pressão para alargar seu campo.

E, num ato de fricção contracolonial, ir aprendendo, que aquele projeto de nação, que estava disposto na Constituição teria que ser alargado, como um rio que vai batendo em suas duas margens e criando as curvas, arrastando tudo, pedindo passagem à força bruta; ora no remanso do tempo, rio sempre ancestral que corre rumo ao passado; assim é a noção cidadania, como um espaço de tensão é água que molha, trás a vida e pode levar à morte.

Sendo assim, viva a Constituição de 1824, com todos os pontos frágeis que nós, pessoas do futuro, 2025, possamos criticar com razão e justiça.

Para bem ou para o mal, a Constituição de 1824, foi a mais longeva que o Brasil teve, durando de 1824 até 1891, “morreu” aos 67 anos de idade, de morte matada, pelo segundo golpe: o da República. Pelo menos essa segunda Constituição, de 24 de fevereiro de 1891, agora republicana, foi promulgada, ou seja, votada democraticamente pela Assembleia dos deputados. Mas essa é outra história.

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O Professor doutor Eduardo Martins, é docente adjunto 4, UFMS, campus de Nova Andradina, curso de História.